sábado, 10 de maio de 2014

ANA


Enquanto caminha pela casa, absorta nos seus afazeres, Ana se esquece de si.

Caso houvesse um lado bom nessa vida medíocre, ela diria que era esse – Se ocupar com as obrigações, para não ficar pensando no destino.

Uma coisa interessante de se observar é que em sua casa não há nenhum espelho. Na verdade, existe um. Somente um espelho pequeno que fica recostado no jarro da mesa e que é mais utilizado pelo seu marido para tirar a barba.

Raríssimas são as ocasiões em que Ana se utiliza desse espelho para olhar o seu rosto e colocar um pouco de pó rosado. Isso só acontece lá uma vez na vida quando vai a uma missa ou à casa de alguma uma amiga.

Hoje é um desses raros dias. Ela se prepara para visitar uma amiga. Veste delicadamente seu corpo enrugado e magro, encurvado mais pelos sofrimentos do que pela própria idade, quase setenta anos, em um vestido simples, com estampas de flores miúdas e coloridas.

Por um instante, Ana, indvertidamente, passa diante do reflexo do vidro da cristaleira e fica frente a frente com si mesma.  Uma imagem que ela, há muitos anos, se poupara de ver para não ter confirmado diante dos seus olhos o sentimento de que “a vida passou”.

- Ana, Ana, Ana...! – Diz ela em voz alta para si mesma. Carrega no seu nome repetido toda a meditação que vem evitando fazer a muito tempo.

Nesse instante, o reflexo da sua imagem atravessa o vidro e se mistura com os objetos lá dentro da cristaleira. Aos poucos a visão do seu corpo envelhecido vai saindo do foco dos seus olhos e se projeta na imagem do conjunto de copos pintados.

Uma jovem se destaca na pintura de um dos copos. Ela aparece com em vestido amarelo claro cobrindo os pés, rodeado de babados. Uma fita vermelha amarrada rodeia a cintura prendendo um grande laço que repousa sobre o traseiro delicadamente alcochoado. Sobre a cabeça traz um pequeno chapéu coberto com o mesmo tecido do vestido e também realçado por uma fita vermelha.

A moça desfila com esse visual sobre a calçada de uma praça girando nas suas costas uma delicada sobrinha branca com babadinhos da mesma cor.

Ana se reconhece na imagem da jovem que aparece no copo, naquela mesma cena, há uns cinquenta anos atrás.

Lembra-se perfeitamente desse dia. A cidade inteira estava pelos arredores da praça e da igreja. Era a festa do padroeiro e as mocinhas exibiam seus belos trajes confeccionado durante meses para esta ocasião.

Os rapazes também estavam lá, é claro. E esses, igualmente às moças, se apresentavam com bastante capricho em seus trajes. Em ternos bem cortados e engomados e seus chapéus novos, para impressionar as moças.

No ar, o cheiro dos perfumes e lavandas, se misturava com os odores que vinham dos cavalos que, juntamente com as carroças, ficavam atrelados na rua por trás da igreja, sob os cuidados dos empregados ou dos pastoradores que apareciam para ganhar algum trocado.

Os grupos de moças reuniam-se na pracinha, depois da missa, em uma conversa ruidosa e feliz. Embaralhavam vários assuntos que nunca se concluíam e que, basicamente, giravam em torno de comentários sobre as suas roupas e também sobre as imagens e comportamentos dos rapazes.

A respeito dos rapazes, não havia naquele grupo dos “bons partidos” da cidade, um especial que atraísse o olhar o olhar de Ama. Na verdade, segundo ela, estava longe de ter ali o homem que ela idealizara para acompanha-la na “alegria e na tristeza, na saúde e na doença...”. Todos pareciam infantis e fúteis demais. - Uns narcisistas, uns machistas com certeza! – Afirmava convicta.

Por ironia do destino, ao invés dela escolher, como era o seu desejo, neste dia, Ana fora escolhida por um dos rapazes. Em vão ela que relutou por quase toda a festa. O jovem a cercou de atenção e gentilezas. Utilizou-se das armadilhas mais eficazes para prender um coração de uma jovem ingênua e sonhadora. E prendeu.

Daquela noite de festa, para os dias de dona de casa, de criação dos filhos e dos bichos, longe dos sonhos de felicidade, os anos passaram-se como horas.

As gentilezas e atenções do belo rapaz duraram somente até o altar.

Aos poucos Ana foi se acomodando à condição de servir ao seu senhor, viu seus filhos indo embora para a vida e a solidão se alojando em seu peito tomando a posição de “...até que a morte os separe”.

Desde então, como uma velha feiticeira inconformada em perder a juventude, Ana decidiu não ter nenhum espelho pela casa para que durasse para sempre a imagem daquele tempo na sua mente.

Hoje, porém, inadvertidamente, acabou caindo na armadilha de se ver refletida no reflexo do vidro da cristaleira.

Todavia, Ana, reunindo as suas últimas forças de feiticeira, prendeu-se naquele copo e ficou lá, linda, jovem e feliz para sempre.
(Ivana Lucena, maio de 2014)

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